segunda-feira, 2 de junho de 2014

A lição que o Brasil está prestes a dar ao mundo


A lição que o Brasil está prestes a dar ao mundo


Há um pensamento em voga entre nós: devíamos sabotar a Copa, torcer contra, colaborar para que “não haja” Copa. Isto seria a coisa cívica e correta a fazer – usar a Copa do Mundo no Brasil não para vender ao mundo uma imagem boa do país, mas, ao contrário, para revelar nossas mazelas, para admitir nossas iniquidades diante do planeta.
Isto seria um levante contra “tudo isso que está aí” – o maldito padrão Fifa que não conseguimos alcançar e que nos humilha; nossa incapacidade histórica de fazer qualquer coisa honestamente, sem cobrar ou pagar propina; a economia que não anda; nossa ineficiência estrutural e nossa leniência crônica que nunca cumprem o que promete, que perdem prazos e desrespeitam contratos; nossa falência como nação que não consegue andar para frente em tantos aspectos essenciais; nossa incompetência em superar essa fenda social profunda que nos divide há séculos em duas castas que se odeiam, às vezes em silêncio, às vezes nem tanto.
Mas sabotar a Copa funcionaria também como uma espécie de autoexpiação pública e mundial, transformando nossas questões nacionais, internas, num inesquecível fiasco global. Como se a Copa do Mundo deixasse de ser uma festa para virar uma chibata. Como se o maior evento do planeta, que nos foi confiado e que nós brigamos para receber, não representasse um momento de alegria mas sim uma oportunidade de gerar constrangimento, vergonha, decepção e má publicidade.
Sorrir virou uma assunção de cretinice. Torcer pelas cores nacionais na Copa virou um crime. Exercer o gosto pelo futebol, um traço nacional, virou coisa de gente pusilânime.
Ao mesmo tempo, ver o Brasil mal retratado na imprensa de outros países virou uma alegria. Passamos a gostar da ideia de esfregar nossos aleijões na cara da audiência internacional – tendo especial regozijo ao ver a classe média do resto do mundo virar de lado e tampar o nariz. Adoramos jogar lama no próprio rosto. E convidamos os outros a nos enlamear também. Estamos torcendo para que as coisas funcionem mal, e para que tudo dê errado, e para que não consigamos fazer nada direito, para que tragédias aconteçam, para que tudo mais vá para o inferno.
Estamos vibrando com a derrocada daquilo que mais odiamos. E o que mais odiamos parece ser o Brasil. Como se o Brasil não fôssemos, tão e simplesmente, nós mesmos.
Tenho muita dificuldade de entrar nessa onda de autoimolação. E na inconsequência juvenil dessa postura “quanto pior, melhor”. Há um niilismo contido nesse pensamento, e um masoquismo meio piegas e vazio nessa proposta, um espírito de porco oco e doentio, que me desagradam profundamente. Talvez porque haja muita destruição aí – e eu seja um construtor. Talvez porque haja muita coisa prestes a ser posta abaixo, indiscriminadamente, e eu seja um criador que gosta de erguer obras. Não sou um demolidor de paredes. Então não consigo achar que botar fogo no circo com todo mundo debaixo da lona possa ser uma boa ideia. Talvez por já ter vivido fora do país, e visto o Brasil lá de fora. E por ter dois filhos brasileiros, que terão seu futuro próximo acontecendo por aqui. E por já estar vivendo meu 43. ano de vida. Já estou muito velho para achar que arrasar a terra possa facilitar o nascimento de alguma outra coisa sobre ela.
Fico imaginando esse mesmo pensamento noutros países. Cito apenas alguns. Você completa o quadro.
Na Copa de 2002, o Japão deveria, logo na abertura, fazer menção a seus crimes de guerra, que não foram poucos, pelos quais jamais se desculpou. Ou então alertar para o tratamento discriminatório até hoje imposto aos burakumin – pessoas  que exercem profissões “impuras”, como coveiros e açougueiros. Ou protestar contra a xenofobia, e o sentimento de isolamento (quando não de superioridade) racial que ainda hoje permeia a sociedade japonesa.
A Coréia, no mesmo ano, deveria denunciar seu patriarcalismo opressor e a violência doméstica contra mulheres que é uma espécie de direito adquirido dos homens por lá até hoje – quase 60% das esposas afirmam sofrer algum tipo de abuso dentro de casa.
Os Estados Unidos deveriam ter encerrado a Copa de 1994 com uma apoteose em forma de perdão pela barbaridade das duas bombas atômicas que atiraram covardemente sobre a população civil de duas cidades, em nome de um teste científico (afinal, gente amarela não é gente, né?) e de um aviso nuclear aos novos inimigos. Foram 250 000 mortos, entre crianças, mulheres, bebês, velhos, gestantes, recém nascidos. Ou então a apoteose deveria representar uma elegia às populações indígenas americanas massacradas. Ou aos mortos de todas as ditaduras que os Estados Unidos apoiaram ao longo de décadas, inclusive ensinando as melhores técnicas para “prender e arrebentar”, para vigiar e punir e esganar. Os Estados Unidos também poderiam se retirar da Copa, e também das Olimpíadas, bem como de todas as competições internacionais em que costumam brilhar, em protesto contra o fato de serem a maior economia do mundo e até hoje não terem tido a capacidade de oferecer um sistema público de saúde universal aos trabalhadores que produzem essa riqueza toda – quase 50 milhões de americanos simplesmente não tem a quem recorrer se ficarem doentes.
A África do Sul, em 2010, deveria ter alardeado sua liderança mundial em estupros – 128 estupros por 100 000 habitantes. (Ah, sim. Na Nigéria, que receberemos esse ano, o estupro marital não é considerado crime. A delegação nigeriana, composta de maridos, deveria entrar no Itaquerão empunhando essa bandeira?)
A Itália e a Espanha, as duas últimas campeãs mundiais, nem deveriam vir à Copa. Na Itália, o desemprego entre os jovens é de 38,5% – no Sul, a região mais pobre do país, a taxa é de 50%. Ano passado, 134 lojas fechavam diariamente na bota – mais de 224 000 pontos já fecharam no varejo italiano desde 2008. Na Espanha, o desemprego está batendo em 30% na população em geral. Entre os jovens, já encostou também nos 50%.
Ou seja, se fossem países sérios, Espanha e Itália não perderiam tempo e recursos participando de um evento da Fifa, essa corja internacional, e se dedicariam com mais a afinco a resolver seu problemas, que são muito graves. Trata-se de países à beira da bancarrota. (Só para comparar, a taxa de desemprego no Brasil, esse fim de mundo em que vivemos, é de 4,9%). Os americanos, se merecessem os hambúrgueres que comem, deveriam usar a visibilidade da Copa, já que nem gostam de futebol mesmo, para chamarem a atenção para a tremenda injustiça e para o absurdo descaso que enfrentam em seu sistema público de saúde. E, se tivessem um pingo de vergonha na cara, espanhois e italianos se recusariam a vir para a Copa, a torcer por suas seleções na Copa, e se postariam de costas para os televisores e sairiam quebrando vitrines (das lojas que ainda lhes restam) a cada gol de Iniesta ou de Balotelli. Mais ou menos como estamos planejando fazer por aqui em represália aos êxitos de Neymar e cia.
Eis a lição que o Brasil está prestes a dar ao mundo

3 comentários:

  1. Eder 31 de maio de 2014 às 19:13
    É sério mesmo que vocês ainda têm confiança em nosso sistema eleitoral? Não é muito difícil compreender o porquê que em um país que nada funciona o resultado de uma eleição presidencial saia no mesmo dia… é muita eficiência para o que não se precisa (ou talvez também não funcionaria se não fosse fraudada antes mesmo de votarmos). Concordo plenamente com o Otoniel! Não sou à favor de nenhum tipo de vandalismo ou radicalismo. Estive em manifestações que não acabaram em desordem ou arruaça, fui protestar contra um governo corrupto, desonesto e que não nos representa em nenhum sentido, pois me sinto enganado diariamente quando lembro que para ter saúde tenho que pagar um plano privado, que infelizmente em uma viajem de 600 km dentro do território nacional, dependendo da região eu preciso pagar mais de R$ 100,00 em pedágio, fora o valor exorbitante da gasolina (sem entrar no mérito de a Petrobras estar quase quebrando por falta de capacidade do governo, e vejam que eu mencionei governo, não um partido político)… entre outros descasos dos governantes que “nós” elegemos (com a caixinha mágica do TSE, é claro)… Importante ressaltar que muitos espertalhões usam esse artifício de que “nós elegemos” para jogar a culpa da ineficiência e descaso do governo em cima do próprio povo, dizendo que a escolha foi nossa (em ter que escolher entre o sujo e o mal lavado)… Não estou querendo fazer a cabeça de ninguém, muito pelo contrário, quem quer assistir ou prestigiar aos jogos da copa, que assim o façam, mas não vou (em outras palavras) “maquiar” a situação e fazer de conta que nada de ruim ocorre no país. Podem dizer que é um pensamento piegas ou clichê, mas não consigo acreditar que a maior parte da nação se contente com pão e circo. É tão difícil assim entender que se pra você pode estar bom, mas que outros podem estar necessitando do básico para viver? Hoje eu tenho condições de ter o básico em minha família (e sou considerado classe média), mas como não entender que isso deveria ser no mínimo pra todos? O resto sim, deve ser uma conquista à parte. As manifestações são compreendidas por muitos como um bando de arruaceiros que estão indo às ruas protestar à favor de uma utopia, quando na realidade estamos simplesmente pedindo pelo básico. Não temos estrutura para nosso próprio povo, mas temos que receber bem os turistas para o evento? Pois bem, devemos recebe-los bem sim, com educação e com a hospitalidade que com certeza temos. Mas com licença senhores turistas, estamos reivindicando o básico… Ah! Possivelmente se vocês não estiverem hospedados em um hotel próximo ao estádio não irão chegaram a tempo, pois aqui o transito é caótico!

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  2. Otoniel Fernandes 28 de maio de 2014 às 17:40

    Assim como você não compartilho das idéias de vandalismo ou radicalismo em relação a manifestações durante o período da copa.
    Os pontos levantados em outras nações foram bem ilustrativos, mas faltou antes de tudo analisar porque paira no ar uma insatisfação popular associada aos inúmeros gastos públicos, irremediavelmente esses gastos respingam no cotidiano dessa população insatisfeita.
    Por que só para citar um clássico exemplo, temos os abusos e absurdos da famigerada Lei da Copa, onde os megapatrocinadores oficiais da FIFA (Coca Cola entre outros) terão direito a isenção de seus impostos durante o período de 12 meses. Quem pagará essa dívida aos cofres públicos?? A FIFA??
    Hoje ao andar nas ruas, você vê um brasileiro que não tem mais a mesma “paixão” pelo futebol. Porque talvez esteja aí um despertar de consciência, pra se ter paixões pelo seu pais, com mais senso de justiça social. “Estamos cansados” é a frase que ecoa nos quatro cantos. Não o brasileiro não quer ser hexa, hepta campeão de futebol, se antes não resolver os problemas de ordem conjuntural e estrutural.
    Cabe apenas lembrá-lo que “a chamada primavera brasileira” não teve seu estopim causado pela injustiças do Padrão FIFA. Mas pelos direitos mínimo de acessibilidade e mobilidade assegurados aos cidadãos. Foi nesse grito, que teve eco as várias demandas sociais que estavam entaladas na garganta do brasileiro a muitas décadas.
    “Estamos cansados”. Sim, vai ter copa! Mas não a copa dos fanáticos e cegos por futebol, como em 2002, 1994…Mas de brasileiros que trabalham 151 dos 365 dias do ano para pagar impostos. Uma das maiores cargas tributárias do mundo. Essa sim é padrão FIFA. Trabalhamos para pagar imposto comparativamente mais que alguns países europeus, e norte americanos. Em contrapartida os benefícios sociais são menores no lado de cá.
    Eis a lição que o Brasil esta prestes a dar ao mundo.

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  3. JL 29 de maio de 2014 às 22:52
    Considerando o consumo externo, o Brasil se destaca em duas áreas: a Agricultura (não exatamente a produção de alimentos), sendo o principal exportador mundial. A segunda é o futebol que tornou conhecido mundialmente nosso maravilhoso estilo artístico de ser. E que criou nosso representante maior, talvez de todos nós: Pelé. Nesta Copa poderemos reafirmar esta nossa destacada posição. Ou não. Tenho muitas dúvidas pois o quintal de nossos craques não está mais por aqui e sim pelos campos europeus. Para o consumo interno todavia, a coisa não está tão simples assim, em áreas mais importantes para as pessoas que moram por aqui, segurança, saude, infraestrutura, empregos qualificados, sobretudo educação. Então o que esta Copa vai deixar, a não ser o legado de um custo sem retorno ? O desprezo de muitos brasileiros pela Copa – não lembro ter visto em edições anteriores – não será um indício que até nosso maior valor, está a caminho de uma deterioração? E motivo para o anseio de um valor mais alto que está aflorando: a Cidadania?. Ou seja da busca de valores. Tomara que a nossa Agricultura não seja atingida e que a coisa fique apenas no futebol. Afinal, ainda que contrariando muitos que não pensam assim, fizemos a maior reforma agrária, talvez do mundo todo. A custo zero para o Governo. Do sul ao norte iniciamos com nossos nativos, liderados pelos imigrantes italianos, alemães e japoneses e estamos já no norte e nordeste produzindo em terras antes improdutivas. Enquanto muitos insistem em prestigiar o tal MST. Esta é a nossa História que tem que se resolver e que nada tem a ver com a História dos Estados Unidos, da Itália ou da Alemanha como lembrou a Sereia de Kopenhagen. Afinal de contas os países citados, com seus problemas internos, têm um legado externo notável, determinante na história da Humanidade.

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